José Celso Martinez Corrêa
Arte em Revista 1 – Anos 60. São Paulo, Kairós, 1979
Arte em Revista 1 – Anos 60. São Paulo, Kairós, 1979
Nós
somos muito desenvolvidos para reconhecer a genialidade da obra de Oswald.
Nosso ufanismo vai mais facilmente para a badalação do óbvio sem risco do que
para a descoberta de algo que mostre a realidade de nossa cara verdadeira. E é
verdade que a peça não foi levada nem até agora, nem a sério. Mas hoje que a
cultura internacional se volta para o sentido da arte como linguagem, como
leitura da realidade através das próprias expressões de superestrutura que a
sociedade espontaneamente cria, sem mediação do intelectual (história em
quadrinhos, por exemplo) a arte nacional pode subdesenvolvidamente também, se
quiser, e pelo óbvio, redescobrir Oswald. Sua peça está surpreendentemente
dentro da estética mais moderna do teatro e da arte visual. A
superteatralidade, a superação mesmo do racionalismo brechtiano através de uma
arte teatral síntese de todas as artes e não-artes, circo, show, teatro de
revista etc.
A
direção será uma leitura minha do texto de Oswald e vou me utilizar de tudo que
Oswald utilizou, principalmente de sua liberdade de criação. Uma montagem tipo
fidelidade ao autor em Oswald é um contra-senso. Fidelidade ao autor no caso é
tentar reencontrar um clima de criação violenta em estado selvagem na criação
dos atores, do cenário, do figurino, da música etc. Ele quis dizer muita coisa,
mas como mergulhou de cabeça, tentando fazer uma síntese afetiva e conceitual
do seu tempo, acabou dizendo muito mais do que queria dizer.
A
peça é fundamental para a timidez artesanal do teatro brasileiro de hoje, tão
distante do arrojo estético do Cinema Novo. Eu posso cair no mesmo artesanato,
já que há um certo clima no teatro brasileiro que se respira, na falta de
coragem de dizer e mesmo possibilidade de dizer o que se quer e como se quer.
Eu
padeço talvez do mesmo mal do teatro do meu tempo, mas dirigindo Oswald eu
confio me contagiar um pouco, como a todo o elenco, com sua liberdade. Ele
deflorou a barreira da criação no teatro e nos mostrou as possibilidades do
teatro como forma, isto é, como arte. Como expressão audio-visual. E
principalmente como mau gosto. Única forma de expressar o surrealismo
brasileiro. Fora Nelson Rodrigues, Chacrinha talvez seja o seu único seguidor
sem sabê-lo.
O
primeiro ato se passa num São Paulo, cidade símbolo da grande urbe
subdesenvolvida, coração do capitalismo caboclo onde uma massa enorme,
estabelecida ou marginal, procura através da gravata ensebada se ligar ao mundo
civilizado europeu. Um São Paulo de dobrado quatrocentão, que somente o olho de
Primo Carbonari consegue apanhar sem mistificar. O local da ação é um
escritório de usura, que passa a ser a metáfora de todo um país hipotecado ao
imperialismo. A burguesia brasileira lá está retratada com sua caricatura – um
escritório de usura onde o amor, os juros, a criação intelectual, as palmeiras,
as quedas d’água, cardeais, o socialismo, tudo entra em hipoteca e dívida ao
grande patrão ausente em toda ação e que faz no final do ato sua entrada
gloriosa. É um mundo kafkiano, onde impera o sistema da casa. Todo ato tem uma
forma pluridimensional, futurista, na base do movimento e da confusão da cidade
grande. O estilo vai desde a demonstração brechtiana (cena do cliente) ao
estilo circense (jaula), ao estilo de conferência, teatro de variedades, teatro
no teatro.
O
segundo ato é o ato da Frente Única Sexual passado numa Guanabara. Utopia de
farra brasileira, uma Guanabara de telão pintado made in the States, verde e
amarela. É o ato de come vive, como é o ócio do burguês brasileiro. O ócio
utilizado para os conchavos. A burguesia rural paulista decadente, os caipiras
trágicos, personagens de Jorge de Andrade e Tenessee Williams vão para conchavar
com a nova classe, com os reis da vela e tudo sob os auspícios do americano. A
única forma de interpretar essa falsa ação, essa maneira de viver pop e irreal,
é o teatro de revista, a Praça Tiradentes. Assim como São Paulo é a capital de
como opera a burguesia progressista, na comédia da seriedade da vida do
businessman paulistano, na representação através dos figurinos engravatados e
da arquitetura que, como diz Levy-Strauss, parece ter sido feita para se rodar
um filme. O Rio, ao contrário, é a representação, a farsa de revista de como
vive o burguês, a representação de uma falsa alegria, de vitalidade que na
época começava na Urca e hoje se enfossa na bossa de Ipanema.
O
terceiro ato é a tragicomédia da morte, da agonia perene da burguesia
brasileira, das tragédias de todas as repúblicas latino-americanas com seus
reis tragicômicos vítimas do pequeno mecanismo da engrenagem. Um cai, o outro o
substitui. Forças ocultas, suicídios, renúncias, numa sucessão de abelardos que
não modifica em nada as regras do jogo. O estilo shakespeareano interpreta em
parte principalmente através de análises do polonês Jan Kott esse processo, mas
o mecanismo das engrenagens imperialistas – um mecanismo não é o da história
feudal, mas o mecanismo um pouco mais grotesco, mesmo porque se sabe hoje que
ele é superável, passível de destruição. A ópera passou a ser forma de melhor
comunicar este mundo. E a música do Verdi brasileiro, Carlos Gomes, “O Escravo”
e o nosso pobre teatro de ópera, com a cortina econômica de franjas, douradas,
pintadas, passam a ser a moldura desse ato.
Aparentemente
há desunificação. Mas tudo é ligado às várias opções de teatralizar, mistificar
um mundo onde a história não passa do prolongamento da história das grandes
potências. E onde não há ação real modificação na matéria do mundo, somente o
mundo onírico onde só o faz-de-conta tem vez.
A
unificação de tudo formalmente se dará no espetáculo através das várias
metáforas presentes no texto, nos acessórios, no cenário, nas músicas. Tudo
procura transmitir essa realidade de muito barulho por nada, onde todos os
caminhos tentados para superá-la até agora se mostram inviáveis. Tudo procura
mostrar o imenso cadáver que tem sido a não-história do Brasil destes últimos
anos, à qual nós todos acendemos nossa vela para trazer, através de nossa
atividade cotidiana, alento. 1933-1967: são 34 anos. Duas gerações pelo menos
levaram suas velas. E o corpo continua gangrenado.
Minha
geração, tenho impressão, apanhará a bola que Oswald lançou com sua consciência
cruel e anti-festiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos de
revolucioná-la. Ela não está ainda totalmente conformada em somente levar sua
vela. São os dados que procuramos tornar legíveis em nosso espetáculo. E volto
para meu trabalho. E volto para meu trabalho, para a redação do espetáculo
manifesto do Oficina. Espero passar a bola para frente com o mesmo impulso que
a recebi. Força total. Chega de palavras: volto para o ensaio.